Drummond em campo

O poeta que fez da bola uma poesia capaz de atravessar gerações — e amava o futebol com a mesma intensidade com que amava o Brasil.

A LITERATURA COMO FORMA DE INTERPRETAR O MUNDO

Vitor da Silva Soares

8/18/20253 min read

Carlos Drummond de Andrade, poeta que fez da palavra um reflexo da alma brasileira, também encontrou no futebol uma de suas maiores fontes de encantamento. No livro Quando é dia de futebol, não vemos apenas crônicas sobre partidas e jogadores: vemos um diálogo entre literatura e esporte, entre a grandeza do gesto artístico e a simplicidade do chute na bola.

Drummond sabia que o futebol não era só um jogo. Para ele, o campo era palco de alegrias, dramas e esperanças coletivas. Quando escrevia sobre Pelé, Garrincha, Tostão ou Rivelino, não falava apenas de craques — falava de poesia em movimento. Sobre Pelé, deixou registrada uma das frases mais conhecidas de sua obra:

“O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé.”

Mais tarde, o próprio Pelé retribuiria, dizendo:

“O difícil, o extraordinário, não é escrever mil textos, como Drummond. É escrever um texto como Drummond.”

Esse diálogo afetuoso entre o maior poeta e o maior jogador de nossa história mostra que futebol e literatura partilham algo em comum: ambos nascem do dom de transformar o comum em extraordinário. O gol e o poema, cada um a seu modo, são momentos únicos que resistem ao tempo.

Mas Drummond não parava na celebração dos heróis. Ele sabia também do peso da derrota e da fragilidade da esperança. Em “Esperanças picadas”, evocava a memória de Alemanha 74, quando o Brasil perdeu seu brilho diante do mundo. E lembrava, com a clareza de quem olha além da partida:

> “Perder é uma forma de aprender. E ganhar, uma forma de esquecer o que se aprendeu.”

Essa sabedoria amarga revelava um poeta atento: o futebol não era apenas festa, mas também espelho de nossas falhas e de nossa condição humana.

Em outro momento, nasce a figura do Garoto. Não era craque, não estava em campo, mas carregava na alma o mesmo deslumbramento. Tinha um sonho: assistir a um jogo de verdade, não pela televisão ou pelo rádio, mas dentro de um estádio. Em sua memória, ficou marcado o dia em que, no Maracanã, viu Pelé e Garrincha juntos. Sem palavras para contar a experiência, guardou o instante da forma mais singela: pegou um papel de bala e escreveu nele, com a letra mais caprichada: “Mi primer partido de fútbol.” Assim, Drummond lembrava que a emoção do futebol não está apenas nos craques, mas também no coração anônimo que vibra nas arquibancadas.

E havia ainda sua “Carta sem selo” — não a um homem, mas à própria bola. Nela, Drummond se dirigia ao objeto sagrado do jogo como quem reza, pedindo-lhe que salvasse o Brasil na Copa de 1970. Rogava:

“Uma bola pode salvar o país, se tomar posição franca a nosso favor, contra tudo e contra todos.”

Era mais do que ironia. Era a consciência de que, no Brasil, o futebol toca até os nervos da nação, misturando-se a esperanças políticas, sociais e até pessoais.

Nas páginas do livro, Drummond também eterniza Garrincha, o menino que brincava com pernas tortas e transformava limitações em espetáculo. O poeta o via como “delegado de um deus farsante”, capaz de zombar das regras e encantar multidões, ensinando que a simplicidade também pode carregar genialidade.

Ao mesmo tempo, Drummond refletia sobre a própria arte de escrever, comparando-a ao ato de fazer um gol: milhares de páginas podem nascer, mas o verdadeiro poema, como o verdadeiro gol, é raro, misterioso, quase divino.

Quando é dia de futebol é, portanto, mais do que uma coletânea: é um convite. Um convite às novas gerações para descobrirem que a leitura pode ser tão emocionante quanto uma final de campeonato; que a literatura, como o futebol, faz sonhar, sorrir, chorar e acreditar.

Drummond uniu duas paixões nacionais — a poesia e a bola — e mostrou que ambas são arte. Ler esse livro é descobrir que o gol também pode ser verso, e que a literatura também pode ser jogada de gênio.