Adultezação Infantil: Da Literatura ao Alerta Digital de Felca

Entre Clarice Lispector, Franz Kafka e a denúncia do influenciador Felca, uma reflexão necessária sobre como a sociedade impõe papéis adultos às crianças — retirando delas o direito à infância.

A LITERATURA COMO FORMA DE INTERPRETAR O MUNDO

Vitor da Silva Soares

8/12/20254 min read

A exploração infantil vai muito além do trabalho infantil formal. Ela também se manifesta de forma simbólica e emocional, quando crianças são expostas precocemente a pressões, responsabilidades e realidades próprias do universo adulto. Isso pode ocorrer em diferentes contextos: nas famílias, que exigem maturidade emocional antes do tempo; na mídia, que transforma crianças em “produtos” de entretenimento; no esporte e na arte, onde muitas vezes são cobradas como profissionais; e até no ambiente escolar, quando o foco excessivo no desempenho apaga o espaço para o lúdico. Esse processo é chamado de adultezação — a retirada da vivência plena da infância para moldar a criança a papéis e expectativas tipicamente adultos.

As consequências podem ser profundas: perda da espontaneidade, insegurança emocional, ansiedade e dificuldade em construir uma identidade própria. Muitas vezes, a criança passa a viver para atender às expectativas externas, sem tempo ou liberdade para explorar seus interesses e afetos. Esse fenômeno também se entrelaça com a desigualdade social: em contextos de vulnerabilidade, a adultezação frequentemente vem acompanhada de trabalhos domésticos pesados, necessidade de contribuir financeiramente para a família e exposição a ambientes de violência.

Na literatura, esse tema encontra ecos em obras como "A menor mulher do mundo", de Clarice Lispector, e "A primeira dor" e "Um artista da fome", de Franz Kafka. Em todas elas, há um elemento comum: o olhar externo que reduz o indivíduo a uma função ou papel, negando-lhe complexidade e humanidade. Na vida real, a criança adultizada é vista como “pequeno adulto” — mas sem o poder e a autonomia de um adulto, apenas com as cobranças e restrições.

Em "A menor mulher do mundo", Pequena Flor é “descoberta” por um explorador e passa a existir apenas através do olhar curioso e exótico de quem a observa. Não há interesse por sua experiência ou subjetividade; o valor está no que ela representa como objeto raro. Isso se aproxima da adultezação infantil: quando a sociedade enxerga crianças como “mini-adultos” ou “talentos precoces”, tende a desconsiderar sua vivência genuína, impondo rótulos e expectativas que lhes retiram o direito de viver plenamente a infância.

Em "A primeira dor", Kafka apresenta um trapezista que vive preso à sua barra, totalmente dedicado à arte, sem jamais tocar o chão. Quando pede uma segunda barra, o empresário sente temor — não pelo pedido em si, mas por perceber que o artista começa a pensar fora do padrão imposto. Aqui, a ligação com a adultezação está no controle: adultos responsáveis podem se sentir ameaçados quando a criança questiona ou tenta romper o papel que lhe foi atribuído. Não se trata apenas de antecipar responsabilidades, mas também de limitar pensamentos e ações para manter a criança dentro de um molde que serve mais aos adultos do que a ela mesma.

Já em "Um artista da fome", o protagonista vive de jejum, transformando sua abstinência em espetáculo. Ele não come, não por escolha estética, mas porque nunca encontrou um alimento que lhe agradasse. Essa busca impossível e a dedicação absoluta à “pureza” de sua arte o levam ao isolamento, à incompreensão e, por fim, à morte. Depois, ele é substituído por uma pantera cheia de vitalidade, símbolo de liberdade e plenitude. A narrativa dialoga com a adultezação infantil ao mostrar como viver aprisionado a uma expectativa externa — seja a performance da fome, seja o comportamento adulto — pode esvaziar a vida e impedir a experiência autêntica da própria existência. Assim como o artista da fome nunca encontrou o que buscava, muitas crianças adultizadas crescem sem experimentar de forma livre as descobertas e alegrias da infância, carregando um vazio que raramente é percebido pela sociedade.